O que seria um carro a ser esquecido em um ferro-velho para muitos, é a decoração mais preciosa da casa de Seu Sandoval, em Fortaleza. Decoração mesmo, porque ele não deixa sequer os pneus tocarem o chão. A quilometragem ainda está zerada, acredite. Mesmo assim, o Corcel GTXP, de 1972, recebe zelo que carro nenhum do mundo ousaria ter. “Eu nunca dirigi esse Corcel, apesar de funcionar perfeitamente, porque guardo como um dos meus bens mais preciosos. Ele só sai daqui se for em cima de uma prancha. Trato como se fosse uma criança, cuido e faço carinho”, confessa o cearense Luís Sandoval Pinheiro, de 61 anos.
Se coubessem, talvez a sala da casa dele estaria com todos os carros dividindo espaço com sofá, televisão e adereços que uma residência comum costuma ter. Mas a paixão do engenheiro e funcionário público se estende ao estacionamento e ao jardim de sua casa. Em vez de flores, 26 modelos diferentes de Corcel são cuidadosamente acomodados pelos espaços. Vinte e seis! Cada um com uma peculiaridade, uma história. E todos com a vitalidade de um carro de luxo recém-saído da concessionária.
A paixão pelos veículos cujos nomes remetem a um ‘cavalo veloz’ surgiu em 1973, quando Sandoval tinha apenas 18 anos. O primeiro carro realmente nunca dá para esquecer. “Juntei um dinheirinho e comprei o meu primeiro carro: um Corcel. Era o top de linha, todo bonito, arrumado. Ninguém entrava nele, só eu. Logo que comecei a aprender a dirigir roubaram meu carro, e até hoje eu estou comprando Corcel para ver se acho meu primeiro amor”, brinca.
Desde então, não parou mesmo de comprar. Toda sua coleção possui exigências de qualquer carro moderno: ar-condicionado, direção hidráulica, bancos de couro e som. As cores são as mais diversas, como os preços (de R$ 5 mil a R$ 50 mil) e os anos de fabricação: de 1968 a 1977. Os diferenciais do Corcel que cativaram Sandoval são a beleza, o conforto e a economia que, para ele, carro nenhum tem. Um deles, inclusive, é especial: o chamado LDO [Luxuosas Decorações Opcionais], com interior totalmente acarpetado e painel com aplicações em imitação de madeira. Já o GTXP tem mais potência, além de ser mais arrojado. “Os garotões da época gostavam porque ele saia rasgando. Com as válvulas maiores, carburação dupla e mais rendimento. A turma gostava, dava uma ideia de esportivo mesmo. Era tipo um Camaro”.
Veja as fotos do GTXP de Sandoval:
E esse é justamente o modelo que Sandoval mais se identifica. O verdadeiro troféu da casa: Corcel vermelho, com capô fosco preto, teto revestido de vinil, bancos de couro reclináveis, som, faróis de longo alcance, pneus novíssimos e porta-malas espaçoso. Tão limpo, que dá até para ver o reflexo, como um espelho. Tudo super bem cuidado.
“Esse carro é a minha grande paixão. Olha o retrovisor. Olha o som”, mostra admirado, como quem o vê pela primeira vez.
Apesar do conforto dos carros, o engenheiro tem coragem de trafegar em apenas seis deles. Os considerados mais comuns, cujos riscos de colidir, arranhar ou ser roubado parecem doer menos no coração. “Os outros 20 ficam guardados. Uns em casa e outros nos sítios. Tenho medo de deixar na rua. Eu só saio nesses menos conservados, os mais simples. Se alguém arranhar ou bater, não tem tanto problema, porque são os carrinhos que podem ser substituídos”.
Saiba Mais
A restauração dos carros é um dos maiores amores de Sandoval. Em razão disso, construiu até uma auto-peças particular dentro de casa, com peças de todo o tipo, guardadas há mais de 30 anos. Se não tiver alguma, viaja a outros estados para comprar. Nos momentos de lazer, entra nos carros e começa a desmanchá-los e consertar o que necessita de cuidado.
“Restauração é muito difícil. Como são carros antigos, você vai comprar uma peça e não existe mais. As montadoras param de fabricar. As vezes eu vendo para pessoas que vem até de fora para comprar”, conta. Mas a venda só é concretizada se o cearense tiver mais de seis peças iguais. Caso contrário, nada feito. “Eu vendo para ter que comprar depois? Posso precisar e não terei onde resgatar, porque até mesmo a Ford não tem, nem o museu”, acrescenta.
Mesmo com todo esse amor, negociar os Corcel já parece ser uma realidade para Sandoval. Aos poucos, ele começa a se desfazer dos carros. Vendeu um deles, um “azulão”, por R$ 35 mil. As mãos ficaram trêmulas e quase desistiu da ideia no momento da venda. “Eu me tremi todo. Pedi logo para o comprador tirar o carro: ‘tire o carro, tire o carro’. Ele disse: ‘não se preocupe, eu vou vir aqui para mostrar pro senhor’. Eu falei: ‘não venha não, só traga se for pra me vender de novo, porque se for para me mostrar, não traga não”.
Os preços sugeridos para venda giram em torno dos R$ 20 mil. O motivo da desistência da coleção é em razão de um problema na coluna. Afinal, para ele, não adianta ter vários carros, se não pode cuidar com carinho. “O que eu mais gosto é de mexer. Esse é o meu entretenimento. Minha esposa me procura, e eu estou dentro dos carros, nem vejo o tempo passar… Como eu não posso mais cuidar de todos, aquela paixão vai acabando. Essa decisão é mais para evitar ver os Corcel abandonados, sem cuidado, sem polimento”, fala entristecido.
Apesar das possíveis vendas, o sonho de Sandoval ainda inclui os Corcel. Aos 61 anos, o engenheiro pretende ganhar algum sorteio por aí, para comprar os seis modelos que ainda faltam, e construir um museu particular. “Isso mataria o meu desejo. Gostaria que as pessoas entendessem a história desse carro, que foi bom, muito bem vendido e procurado na década de 1970. Mas, pensando bem, eu sou um cara sortudo. Enquanto as mulheres dos outros homens sonham em ter um jardim de flores. A minha tem um jardim de Corcel”. E, para Sandoval, eles podem ser até mais bonitos que a mais bela das flores.
Sobre o carro
O Corcel foi um automóvel produzido pela Ford no Brasil, de 1968 a 1986. Lançado inicialmente como um sedã quatro portas, o Corcel I foi bem aceito na estreia, em 1968. O espaço interno e o acabamento chamavam a atenção, e as inovações mecânicas eram muitas. O Corcel II chegou no final de 1977, com a carroceria totalmente nova, com linhas mais retas, modernas e bonitas. Os faróis e as lanternas traseiras, seguindo uma tendência da época, eram retangulares e envolventes.
Oito anos depois, o carro começou a ficar obsoleto diante da concorrência. E parou de ser fabricado, talvez para a felicidade de Sandoval. Se ainda estivesse no mercado, quem sabe a coleção acomodada em casa não recebesse tantos visitantes apaixonados por carros antigos.